Homens das artes que são ícones do 2 de Julho
Reportagem: Joice Pinho / Secom PMS
Quando os versos “nasce o sol a 2 de Julho, brilha mais que o primeiro” ecoam nas ruas do Centro Histórico de Salvador, baianos e turistas que acompanham o cortejo bicentenário que celebra a Independência do Brasil na Bahia relatam uma emoção singular. Mas o que muitos desconhecem é quem foi o autor da letra da canção que se tornou, posteriormente, o Hino do Estado da Bahia.
Ele escreveu a letra do Hino da Bahia, lutou e relatou tudo
O poeta e combatente voluntário, Ladislau dos Santos Titara é um dos maiores ícones do 2 de Julho. Sua contribuição para a história da Bahia vai muito além de ter composto a letra do hino. Militar de carreira, participou ativamente das lutas pela independência e foi um dos mais brilhantes cronistas das batalhas. Seus textos, relatando as suas próprias vivências e descrevendo o dia a dia do cerco aos portugueses em Salvador, destaca figuras importantes do processo e fala sobre a geografia baiana através de rios como Joanes, Jacuípe, Camaçari, Prata, Ganhador e outros.
Em seu livro Paraguaçu: Epopéia da Guerra da Independência na Bahia, Titara registrou detalhes da participação efetiva das vilas e povoados do Recôncavo na luta pela liberdade do Brasil na Bahia e também a presença de personalidades que a historiografia oficial não trouxe à luz. Um dos personagens que ficaram em segundo plano nos livros de história, mas que tem participação destacada no 2 de Julho, é o capitão-mor dos tupinambás da Vila de Abrantes, Joaquim Euzébio de Santana. Ele comandou um batalhão de indígenas que lutaram de forma voluntária contra Portugal.
De acordo com o historiador e pesquisador Diego Copque, o papel de Titara no registro das batalhas é essencial para entendermos a nossa história. “É um importante documento a respeito das lutas pela independência. Ele é testemunha ocular da atuação das povoações e freguesias do Recôncavo Norte na consolidação da independência do Brasil na Bahia. Sua obra é uma rica fonte a ser dialogada, porque parte dos registros oficiais não têm a visão de um sujeito mestiço e popular. Sua narrativa é justamente a visão de um homem do povo”, afirma Copque.
Ladislau dos Santos Titara era filho de uma mulher negra escravizada com um advogado, que o ensinou a ler e a escrever. Seguiu carreira militar, mas ficou do lado brasileiro e voluntário no momento da ruptura com Portugal. Nasceu na Feira do Capuame, então distrito do atual município de Dias D’Ávila. À época, a feira era um dos maiores pontos de comercialização de gado do Brasil e da América do Sul, e contribuiu fornecendo alimentos para os combatentes da independência.
Tambor Soledade
Para entender o processo de consolidação do 2 de Julho é preciso conhecer os cidadãos que lutaram de forma árdua e voluntária para tornar a independência uma realidade. Uma figura histórica nesse sentido é o Tambor Soledade.
Não se sabe se ele de fato existiu ou se é um ícone. Conta a história que aquele soldado, negro, estava tocando tambor em frente à Camara de Cachoeira, num momento de festa logo após o governo da vila ter declarado Pedro de Alcântara como regente do Brasil, no dia 25 de junho de 1822, marcando uma ruptura definitiva com Portugal. Foi quando um navio português se aproximou pelo Rio Paraguaçu e abriu fogo. Tambor Soledade foi ferido, mas sobreviveu. Dessa forma, entrou para a história como um símbolo por ter sido vítima da violência do colonizador.
O professor de História da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Milton Moura, contou que o quadro intitulado ‘O Primeiro Passo para a Independência da Bahia’, de Antônio Parreiras, em 1931, dá voz a quem de fato atuou no processo. Na obra, que está exposta no Palácio Rio Branco e na Câmara de Cachoeira, o artista retrata Tambor Soledade no centro e em primeiro plano, ferido, mas sem largar o seu tambor.
“O quadro é uma metanarrativa, uma outra visão sobre a história oficial da independência. A pintura desloca a figura do príncipe Pedro I para a esquerda, longe do protagonismo. Ao mesmo tempo, coloca no centro figuras da população de Cachoeira como mulheres, homens negros e brancos e, em primeiro plano, o Tambor Soledade. Ele aparece ferido e caído no chão, mas ainda com a mão sobre o instrumento”, detalhou.
O professor explica que é necessário entender o contexto desse episódio do bombardeio e como ele é um marco na nossa história. “Acho muito importante que Antônio Parreiras tenha percebido a importancia de um jovem negro e artista nesse processo. Havia uma manifestação em frente à Câmara de Cachoeira, em que o representante da vila falou para a população que estava proclamando o príncipe Pedro I defensor perpétuo do Brasil”, disse.
“Foi, portanto, uma ruptura oficial com Portugal, que ocorreu muitos meses antes do 7 de Setembro ser declarado na Corte”, explicou. A figura de Tambor Soledade, portanto, representa os diversos heróis que a Independência do Brasil na Bahia teve, mas que a história oficial não deu conta de conhecer e registrar.
Corneteiro Lopes
Outra pintura icônica do 2 de Julho que dá protagonismo a um ícone popular do processo de independência é a ‘Entrada do Exército Libertador’, de 1930, de autoria de Presciliano Silva. Milton Moura explicou que a obra, exposta na Câmara Municipal de Salvador, retrata a entrada das tropas brasileiras em Salvador, com o General Lima e Silva à frente. Porém, o quadro dá destaque ao Corneteiro Luís Lopes, descalço, maltrapilho e com a corneta na mão.
Nascido em Portugal, Luís Lopes estava lutando ao lado do povo baiano em 8 de novembro de 1822, na região de Pirajá, numa das batalhas mais importantes para a expulsão dos portugueses. Com a aproximação dos soldados portugueses em maior número, o corneteiro recebeu a instrução de executar o toque de “retroceder”. O que se conta é que, por sua própria conta, o músico mudou o toque que deveria ser executado – e mudou com isso o destino da batalha.
“Ladislau dos Santos Titara, que estava presente na ocasião e registrou a cena em seus escritos, escreveu que Corneteiro Lopes trocou o toque de ‘retroceder’ pelo de ‘cavalaria: avançar e degolar’. Os portugueses, assustados, então supuseram que o contingente baiano era bem maior do que eles achavam e decidiram recuar”, detalhou o professor.
Mas, será que Luís Lopes trocou o toque de maneira proposital ou errou? Sobre isso, Milton Moura é categórico: “Sem narrativas fantásticas você não tem heróis e, sem heróis, você não tem uma nação. Acredito que, se ele estivesse com medo e querendo retroceder, não teria feito isso. Prefiro acreditar no que Titara diz e que também é a leitura de Brás do Amaral, um dos nossos maiores historiógrafos: Lopes trocou e tocou, mudando a história da Bahia”, concluiu.